Contexutalização do samba nos anos 1950:
Polêmica Noel Rosa e Wilson Batista nos anos 1930.
Lenço no pescoço (Wilson Batista)
Rapaz folgado (Noel Rosa)
Mocinho da Vila (Wilson Batista)
Feitiço da Vila (Noel Rosa)
Conversa fiada (Wilson Batista)
Palpite infeliz (Noel Rosa)
Frakenstein da Vila (Wilson Batista)
João Ninguém (Noel Rosa)
Depoimento de Zé Kéti no disco "A música brasileira
deste século por seus autores e intérpretes" (SESC, 2000), a partir de
gravação do programa Ensaio, em 1973.
Sugestões de leitura:
MATOS, Claudia. Acertei no milhar: samba e malandragem no
tempo de Getúlio. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
PARANHOS, Adalberto. Ação e afirmação dos sambistas na
invenção do samba como "coisa nossa": uma história vista de baixo.
In: GARCIA, Tânia da Costa; TOMÁS, Lia (orgs.). Música e política: um olhar
transdisciplinar. São Paulo: Alameda, 2013.
SANDRONI, Carlos. Feitiço decente: transformações do samba
no Rio de Janeiro (1917-1933). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.: Ed. UFRJ, 2001.
VIANNA, Hermano. O mistério do samba. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar: UFRJ, 1995.
Nesse momento, a questão da identidade do sambista também
informou o conhecido embate musical entre Noel Rosa, músico branco de classe
média e ex-estudante de medicina, e Wilson Batista, mulato boêmio “sem nenhuma
formação musical e semi-alfabetizado” (PIMENTEL; VIEIRA, 1996, p. 81). Em
1933, o então novato Batista lançou, escondido num pseudônimo, a elegia à
figura do malandro sambista “Lenço no pescoço”, que mereceu uma réplica de Noel
com “Rapaz folgado”, na qual o compositor de Vila Isabel defendia separar a
figura do sambista daquela associada ao malandro: “Malandro é palavra
derrotista / Que só serve pra tirar / Todo o valor do sambista / Proponho ao
povo civilizado / Não te chamar de malandro / E sim de rapaz folgado”.
O músico de Vila Isabel
se colocava contrário aos “signos exteriores de uma identidade do samba” como
manifestados na canção de Wilson Batista (a roupa, a navalha, a ginga, a vadiagem),
propondo uma outra aparência (e identidade) para o samba e para o sambista
(SANDRONI, 2001, p. 178). Noel claramente defendia a “classe” dos sambistas (na
qual se incluia, para o desgosto de sua família) e menos um ataque ou acusação
a Batista, sua canção assumia justamente um caráter educativo e corporativo, no sentido de aconselhar um caminho para o
desejado progresso do samba. Tratava-se quase de oferecer ao sambista um “banho
de loja”, algo entendido como estritamente necessário, por exemplo, para a
bem-vinda profissionalização desses músicos populares. E não eram apenas os
compositores que precisavam “evoluir”, os sambas também necessitavam de uma
“estilização” (a criação de uma segunda parte além do refrão, o registro em
partitura, a feitura de arranjo etc.) que permitiria sua livre circulação não
apenas entre a cidade e o morro, mas também entre as mesas de botequins e os
microfones das gravadoras e emissoras de rádio.
Como apontou Sandroni
(2001, p. 172 e 175), a oposição entre “morro e cidade” também era deixada de
lado por Noel em causa própria, sendo ele próprio oriundo de um bairro de
classe média, uma Vila Isabel idealizada pelo músico como um “espaço utópico de
confraternização” entre bambas e bacharéis, entre sambistas populares e compositores
e cantores profissionais. Conforme a letra de “Feitiço da vila” (1934), se São
Paulo dava café (preto), Minas Gerais, leite (branco), a Vila dava um samba com
clara tonalidade mestiça, “não mais signo de exclusão, de separação, mas
diferença que soma”, um bairro que representaria ainda a própria cidade-síntese
da brasilidade que seria o Rio de Janeiro.[1]
“Feitiço da vila”,
aliás, mereceu uma resposta de Batista, dizendo que além de ser um bairro calmo
(sem o agito e a orgia do samba de verdade), o reduto de Noel estava sujeito
aos ladrões que ele negara existir e eram geralmente associados às favelas: “Eu
fui ver para crer e não vi nada disso / A Vila é tranqüila, porém eu vos digo:
cuidado! / Antes de irem dormir dêem duas voltas no cadeado” (“Conversa
fiada”). Sem querer alimentar a polêmica, com “Palpite infeliz” (1935) Noel
diplomaticamente mostrava seu respeito aos bairros e morros do “Estácio,
Salgueiro, Mangueira, Oswaldo Cruz e Matriz”, afirmando que a Vila Isabel “só
quer mostrar que faz samba também”
[sem grifo no original]. Essa posição esquiva – e até mesmo malandra – de Noel
já podia ser encontrada em duas canções de 1932, fosse em “Escola de malandro”
(com Ismael Silva), na qual revelava que “fingindo é que se leva vantagem/
isso, sim, é que é malandragem”; fosse em “Feitio de Oração” de 1932, na qual
buscava uma conciliação: “O
samba na realidade não vem do morro/ Nem lá da cidade/ E quem suportar uma
paixão/ Sentirá que o samba então/ Nasce do coração”.
Obviamente, um cinema que procurava se afirmar econômica,
política e socialmente – e se legitimar em um momento de extremo nacionalismo
como brasileiro – participou ativamente desse processo e serviu como uma
das arenas de conflitos em torno das características do samba carioca, elevado
a ritmo popular nacional, assim como da própria identidade nacional. Como uma
das mais valiosas (ideológica e economicamente) “coisas nossas”, o samba não
podia deixar de ganhar as telas, mas não com “qualquer roupa”. É
significativo que a música “Palpite infeliz” seria incluída no filme Alô, Alô, carnaval!, com Aracy de
Almeida cantando enquanto lavava roupa, mas a cantora se recusou a filmar tal
cena (AUGUSTO, 1989, p. 93; CASTRO, 2005, p. 129).[2]
Zelar pela imagem – fosse a aparência ou posição social –
era fundamental, afinal, nas duas últimas réplicas de Wilson Batista (que
ficaram sem resposta) era isso que o compositor atacava em Noel, chamando-o de
“feio” em “Frankenstein da Vila” (1936) ou cantando, em “Terra de cego” (1936),
que “não fica bonito / Um bacharel
brigar”. Nesse sentido, basta
lembrar que em Alô, Alô, carnaval!,
mesmo que os revistógrafos fossem malandros pobretões (brancos) que moram em
barracos precários (não numa favela, mas aparentemente no subúrbio), seus
sambas eram apresentados no cenário de um sofisticado grill-room por cantores e cantoras luxuosamente vestidos, e todos,
sem exceção, brancos. Afinal, um dos objetivos do filme conforme seu produtor,
era mostrar ao grande público como era um Cassino por dentro (AUGUSTO, 1989, p.
92).
Não surpreende, portanto, que inúmeros dos “doutores do
samba” surgidos nesse momento – cantores e compositores profissionais, brancos,
de classe média (baixa ou alta) e frequentemente portadores de diplomas de
medicina ou direito –, como Mário Reis, Francisco Alves, Lamartine Babo,
Almirante, e até mesmo Noel Rosa (que não concluiu a faculdade), tiveram suas
vozes, e sobretudo faces, largamente registradas em filmes, certamente com
muito mais freqüência que os artistas negros do “estilo antigo” ou mesmo do “estilo
novo”.
Um dos papéis mais importantes para o cinema brasileiro foi
desempenhado, aliás, por um desses “doutores”, Carlos Alberto Ferreira Braga,
estudante de arquitetura, branco e de classe média, cujo pai era diretor de uma
fábrica de tecidos e que adotou o pseudônimo de João de Barro para não
constranger sua família quando gravou seu primeiro disco com o grupo Bando de
Tangarás, do qual também faziam parte Almirante e Noel Rosa.
Se não é preciso destacar novamente a relevância de
Braguinha no cinema brasileiro sonoro – não somente à frente, mas sobretudo atrás
das telas, não simplesmente como compositor, mas também como homem de
negócios (cf. HEFFNER, 2007) –, papel não menos importante foi o da “rainha
branca do samba”, Carmen Miranda, que atendia exemplarmente ao figurino
Estado-Novista “num primoroso equilíbrio de opostos: vestida elegantemente, não
abria mão da ginga nem da gíria associadas aos moradores das favelas”
(MENDONÇA, 1999, p. 53).
Carmen foi
indiscutivelmente a maior estrela do cinema brasileiro na década, sendo seu
primeiro grande sucesso, “Taí”, cantado por uma personagem em um dos poucos
trechos falados de Ganga Bruta (dir.
Humberto Mauro, 1933), participando ela própria dos pioneiros filmes
brasileiros em som ótico – o documentário O
carnaval cantado de 1932 e o semi-documentário A voz do carnaval (dir. Humberto Mauro e Adhemar Gonzaga, 1933) –,
e já surgindo como atração principal de Alô,
alô, Brasil, Estudantes e
finalmente Alô, alô, carnaval, pelo
qual recebeu o cachê mais alto do elenco milionário: 14 contos de réis junto
com sua irmã Aurora, contra 6 contos de Francisco Alves e 4 de Mário Reis
(CASTRO, 2005, p. 130).[3]
O destaque prosseguiu
em Banana da terra, no qual Carmen
apareceu pela primeira vez no figurino de baiana cantando “O que que a baiana
tem”. Devido ao grande sucesso da canção de Dorival Caymmi e à sua viagem para
os EUA, o mesmo número musical foi inserido – e novamente elogiado – em Laranja da China, lançado no carnaval de
1940. Esse “reaproveitamento” não deve surpreender
se nos fiarmos no relato de Ruy Costa de que nas exibições de Banana da terra nos “cinemas do norte”,
o operador parava a projeção, voltava o filme e reprisava o número musical a
pedido do público. De fato, um crítico da época, ao comentar o carnavalesco da
Sonofilms, revelou o entusiasmo generalizado pelo número musical: “Mas não
deixemos de salientar uma coisa – o êxito absoluto, formidável e mesmo
estonteante de Carmen Miranda cantando aquele ‘O que que a baiana tem’.” [4]
Em setembro de 1940, durante
a visita de Carmen ao Brasil após estrear com estrondoso êxito na Broadway, a
Sonofilms chegou a oferecer o valor astronômico de cinquenta contos de réis
para que ela estrelasse mais um filme nacional, o que foi impedido, porém, pelo
contrato de exclusividade que já havia assinado com a Fox, dando início a sua
bem-sucedida carreira em Hollywood. [5]
Para o projeto de um cinema de alto padrão técnico e moral e,
principalmente, de acentuado caráter educativo,
mas que também contribuísse para a construção de uma nação – em perfeita
sintonia com o Estado Novo de Getúlio Vargas, importante aliado dos produtores
e frequentemente homenageado pelos homens de cinema –, se
desejava o retrato das “coisas nossas” nas telas (que ainda atrairiam o grande
público), mas desde que depurados de seus traços supostamente “perniciosos”.
Afinal, como apontou Albuquerque Júnior (2007), mesmo que o “nacional-popular” tenha se
constituido no eixo central da formulação da política cultural durante a Era
Vargas e “embora o povo e o popular fossem, no discurso oficial do Estado, as
matrizes da cultura nacional, o rosto deste povo ainda continua desagradando às
autoridades, sempre que ele aparece fora das idealizações dos letrados.”
Mostrar através do
cinema o Brasil “moderno”, um pujante país agrário-exportador que caminhava na
direção de se tornar uma grandiosa nação urbano-industrializada, era o
objetivo, por exemplo, do “idealismo” do incansável Adhemar Gonzaga ou da
batalhadora Carmen Santos – que A Scena
Muda em 1937 (apud ALMEIDA, C., 1999, p. 104) elogiava por sua “alma de
educadora” –, assim como o de Raul Roulien. O ator-cantor que realizara o feito
de atuar em Hollywood, tendo retornado definitivamente ao Brasil em 1936, foi
talvez o diretor, ator e produtor que mais explicitamente se alinhou ao ideário
getulista, tendo frequentemente contado com o apoio e incentivo oficial do
governo. Afinal, mesmo num projeto de filme sobre a Amazônia, Roulien prometia
que “de cada cobra selvagem que apareça nessas películas, se vejam cinco cobras
civilizadas do Instituto Butantã, de São Paulo, fabricante dos célebres
soros-antiofídeos.”[6]
Desse modo, se
elementos da cultura popular foram elevados a representantes de nossa
originalidade cultural, como o samba de morro, e, portanto valorizados por sua
“brasilidade”, ao mesmo tempo se esperava (e se exigia) que a violência e o
crime (associados a distúrbios, quando não às desigualdades sociais), por
exemplo, estivessem ausentes dos filmes brasileiros. Entretanto, esse cenário
obviamente dava espaço à ambigüidade e contradição, além de constantes
conflitos.[7]
[1] Era esperteza de Noel conferir ao
samba de Vila Isabel um caráter mestiço, algo que, nos 1930, se transformava em
símbolo da nacionalidade. O mesmo acontecia, por exemplo, com a feijoada, antes
conhecida como “comida de escravos”, e que, juntando o feijão (preto), o arroz
(branco), a couve (verde) e a laranja (amarelo), se tornaria símbolo da
culinária brasileira (SCHWARCZ, 1998, p. 196).
[2] Entretanto, a idéia de utilizar
como cenário para filmagem em externa as bicas e os tanques de cinema da área
de serviço nos fundos dos estúdios da Cinédia seria aproveitada poucos anos
mais tarde no carnavalesco Está tudo aí
(cf. FREIRE, R., 2007).
[3] Para fins de comparação, por
filmes da Sonofilms como João Ninguém
(1937) e Laranja da China (1940) o
ator Grande Otelo recebeu apenas 300 mil réis, enquanto o comediante Brandão
Filho disse ter ganhado 200 mil réis de cachê por O bobo do rei (1936). Já Gilda de Abreu diria ter recebido cinco
contos e mais os vestidos que usou em Bonequinha de seda como pagamento
por sua atuação como protagonista do filme (A
Cena Muda, v. 28, n. 50, 14 dez. 1948, p. 8-9; A Cena Muda, v. 27, n. 11, 18 mar. 1947; A Cena Muda, v. 28,
n. 25, 22 jun. 1948, p. 4). No rádio brasileiro dos anos 1930, os cachês por
apresentações de músicos ou atuações em rádio-teatro giravam em torno de 30 mil
réis, o que para Ísis de Oliveira, adolescente e filha de operários, era, em
1938, “dinheiro que não acabava mais” (apud AZEVEDO, 1996, p. 82). Para citar
outro exemplo, o cantor Arnaldo Amaral contou ter começado sua carreira
cantando de graça no Programa Casé, recebendo depois cachês de vinte, trinta e
cinqüenta mil réis. No primeiro contrato de sua carreira, na Rádio Mayrink,
ganhava quinhentos mil réis por mês, ingressando posteriormente na Organização
Byington, aonde seu salário chegou a um conto de réis mensal (Cine-Rádio
Jornal, v. 3, n.123, 14 nov. 1940, p. 9).
[4] Depoimento de Ruy Costa a Alex
Viany, 28 set. 1979, Fundação Museu da Imagem e do Som; PRA NOVE: órgão oficial da PRA 9 Rádio Mayrink Veiga, v. 1, n. 9,
mar. 1939, p. 39.
[5] Cine-Rádio Jornal, v. 3, n. 114, 12 set. 1940; Cine-Rádio Jornal, v. 3, n. 115, 19 set. 1940. Para se ter uma
idéia desse valor (e do valor de Carmen), Wallace Downey ficara surpreso e
(irado) quando o compositor Ary Barroso exigiu dez contos de réis para liberar
as músicas “Boneca de Piche” e “Na baixa do sapateiro” para o filme Banana da terra. O produtor simplesmente
as substititui por “Pirolito”, da dupla Braguinha e Ribeiro, e por outra canção
– mais barata – do compositor então desconhecido, Dorival Caymmi. A música era
justamente “O que que a baiana tem?” (CASTRO, 2005, p. 166-8).
[7] Novamente em relação ao caráter
de propaganda do cinema, a insistência no retrato do popular pelo cinema
brasileiro resultaria em críticas num momento seguinte, sobretudo em relação à
imagem do país no exterior no contexto da política de boa-vizinhança, sucitada,
por exemplo, pela visita do cinegrafista reponsável pelo cinejornal da Metro.
Esse fato levou Renato de Alencar a aconselhá-lo a não aceitar convites para filmar “nossas
originalidades”, nossas “cenas de macumba, com negras infames a dançar sob
carraspanas histéricas”, nem o carnaval com “indecentes exibições de sambas,
desses que falam em cabrochas, malandros e outras carmemirandices hediondas”
[sem grifo no original]. No lugar disso, o editorialista de A Cena Muda rogava ao estrangeiro que
mostrasse em seus shorts o “Brasil em
seu potencial moderno, com suas usinas, suas obras de engenharia como a estrada
de ferro Paranaguá-Curitiba, as obras de Cubatão, o abastecimento d’água de
Ribeira das Lages. Nossos institutos de ensino, de ciência e cultura, os
grandes centros urbanos do Rio, São Paulo, Porto Alegre, Bahia, Recife, Belo
Horizonte; nossa organização bancária, os novos processos de agricultura; nada
de céu mais bonito do mundo, nada de café, de banana, de sambas, de
negros, de favelas indecentes. Mostre um Brasil sem africanismos repugnantes,
um Brasil moderno onde há paz, trabalho, ordem e um vertiginoso progresso
[...]” [grifo do texto] (A Cena Muda,
v. 22, n. 1095, 17 mar. 1942, p. 3).
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